sábado, 12 de fevereiro de 2011

A menina de lá

          Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes.

         Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. – "Ninguém entende muita coisa que ela fala..." – dizia o Pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por exemplo: - "Ele xurugou?" – e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: - "Tatu não vê a lua..." – ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.

          Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios. Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma. Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo, comia logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, ou arroz, abóbora, com artística lentidão. De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. – "Nhinhinha, que é que você está fazendo?" – perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente: - "Eu... to-u... fa-a-zendo". Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?

          Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte, e comentava, se sorrindo: - "Menino pidão... Menino pidão..." Costumava também dirigir-se à Mãe desse jeito: - "Menina grande... Menina grande..." Com isso Pai e Mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: - "Deixa... Deixa..." – suasibilíssima, inábil como uma flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo. Mas, o respeito que tinha por Mãe e Pai, parecia mais uma engraças espécie de tolerância. E Nhinhinha gostava de mim.

          Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. – "Cheiinhas!" – olhava as estrelas, deléveis, sobrehumanas. Chamava-as de "estrelinhas pia-pia". Repetia: - "Tudo nascendo!" – essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. – "A gente não vê quando o vento se acaba..." Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: - "Alturas de urubuir..." Não, dissera só: - "... altura de urubu não ir." O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: - "Jabuticaba de vem-mever..." Suspirava, depois: - "Eu quero ir para lá." – Aonde? – "Não sei" Aí, observou: - "O passarinho desapareceu de cantar..." De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: - "A Avezinha." De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de "Senhora Vizinha..." E tinha respostas mais longas: - "Eeu? Tou fazendo saudade." Outra hora falava-se de parentes já mortos, ela riu: - "Vou visitar eles..." Ralhei, dei conselhos, disse que ela estava com a lua. Olhou-me, zombaz, seus olhos muito perspectivos: - "Ele te xurugou?" Nunca mais vi Nhinhinha.

         Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres.

         Nem Mãe nem Pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhinha, só, sentada, olhando o nada diante das pessoas: - "Eu queria o sapo vir aqui" Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhinhinha – e não o sapo de papo, mas uma bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: - "Está trabalhando um feitiço..." Os outros se pasmaram; silenciaram demais.

           Dias depois, com o mesmo sossego: - "Eu queria uma pamonhinha de goiabada" – sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os pãezinhos da goiabada enrolada na palha. Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a Mãe adoeceu de dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu – "Deixa... Deixa..." – não a podiam despersuadir. Mas veio vagarosa, abraçou a Mãe e a beijou , quentinha. A Mãe, que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela tinha também outros modos.

          Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina, levá-la para sério convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber. Também, o Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queria versar conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão.

          O que ao Pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de tudo não se tirasse o sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo ameaçava se estorricar. Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. – "Mas, não pode, ué..." – ela sacudiu a cabecinha. Instaram-na: que, se não, se acabava tudo, o leito, o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. – "Deixa... Deixa..." – se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao insistirem, no súbito adormecer das andorinhas.

          Daí a duas manhãs quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho – que era mais um vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a refrescação. Fez o que nunca lhe vira, pular e correr por casa e quintal.

          - "Adivinhou passarinho verde?" – Pai e Mãe se perguntavam. Esses, os passarinhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a certo momento, Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a Mãe e o Pai não entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu passarinho-verde pensamento. Pai e Mãe cochichavam, contentes: que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse.

          E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais.
Desabado aquele feito, houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de-repente enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração, de se ver quando a Mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de – "Menina grande... Menina grande..." – com toda ferocidade. E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava.

          Agora, precisavam de mandar um recado, ao arraial, para fazerem o caixão e aprontarem o enterro, com acompanhantes de virgens e anjos. Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado de satino, por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites de verdes brilhantes... A agouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho assim, sua vontade?

          O Pai, em bruscas lágrimas, esbravejou: que não! Ah, que, se consen-tisse nisso, era como tomar culpa, estar ajudando ainda Nhinhinha a morrer...

         A Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, no mais choro, se serenou – o sorriso tão bom, tão grande – suspensão num pensamento: que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! – pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha.

    (in Primeiras Estórias, João Guimarães Rosa, Editora Nova Fronteira)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Como meus professores me ensinaram a ser professor

Esse é o título de uma produção que tive que fazer para o meu curso. A proposta era que pensássemos em como nossos professores influenciaram a escolha da profissão. Segue o texto:



Minha primeira memória com relação aos professores que tive data os idos dos anos 80, quando eu ainda estava no pré. Eu freqüentava a escola desde os dois anos de idade, mas não tenho recordações dessa época. No entanto, me lembro perfeitamente do primeiro dia do pré, eu estava muito ansiosa, e minha professora me pediu que fosse à lousa, escrever meu nome. Fui até o quadro, e dei o meu melhor, com muito cuidado, escrevi meu nome. A professora disse que eu poderia me sentar, e quando eu o fiz, ela me bombardeou com a seguinte afirmação:
- Você escreve espelhado.
Eu não podia entender o que era aquilo, mas pela cara da professora, entendi que não podia ser bom. Ela me chamou à lousa e me manteve lá por o que pareceu para mim uma eternidade. Explicou-me que o desenho do meu nome estava errado e que ela iria me ensinar o correto. Tenho a impressão que este episódio foi determinante para minha baixa auto-estima e minha insegurança quando se trata de assuntos acadêmicos, posto que me lembre dele como se tivesse sido ontem. Claro que muito provavelmente com algumas distorções que a minha estória de vida possa ter provocado.
Minhas lembranças seguintes são mais difusas, menos específicas. Estudei em um colégio de freiras, e me lembro de um grande carinho por cada uma das minhas professoras, tia Auxiliadora (um nome sugestivo para uma professora, não é mesmo?). Lembro-me também de um professor Brasílio, de Educação Física, sempre achei o nome muito curioso.
Com a mudança para Santa Cruz, fui para uma escola pública, considerada de ótima qualidade. Realmente até hoje, é uma das melhores escolas de nossa região. Lembro-me da professora da quinta série, que começava todas as aulas com exercícios para os braços e o pescoço. Ela era mãe da minha tia, e me tratava excepcionalmente bem, talvez pelo vínculo. Lembro-me do professor de Matemática, que às vezes se utilizava de músicas para nos ensinar. Lá na Floresta, vive um passarinho, que mui contente vive cantando sempre... Ele era o máximo. Não tenho muitas outras lembranças deste período, parece-me que estava mais preocupada em integrar-me aos grupinhos de amigos que existiam na escola.
No Ensino Médio, tive professores bárbaros, em uma escola particular. Adorava as aulas da professora de português, e os textos, as regras gramaticais. Tudo fazia muito sentido para mim. Inglês era comigo mesmo, mas as professoras, com exceção da dona Nilda, não ajudavam muito. Meus professores da área de exatas me ensinaram como é importante paciência e compreensão dos limites de seus alunos.
No exterior, tive contato com outro tipo de professores. Aqueles mais frios, distantes, que se limitavam a ensinar o conteúdo. Todos na escola sabiam que eu era uma estrangeira, mas posso contar nos dedos de uma mão quantos deles me perguntaram sobre meu país natal ou sobre como era viver no exterior. Simplesmente não se importavam.
Já na faculdade, ahhh a faculdade! Essa sem dúvida foi a melhor época da minha vida em todos os âmbitos. Os professores da Unesp de Bauru foram os que realmente me provocaram mudanças. Sempre muito acessíveis, de fácil trato. Companheiros mesmo no meu processo de aprendizagem. Dedicados, motivadores, provocadores.
Não posso falar deles sem uma pontinha de nostalgia e sem me emocionar. Jair Lopes, com suas explicações longuíssimas e supostamente lógicas sobre a Psicologia da Motivação. Ensinou-me a perseverar e perdeu (e ganhei) horas e horas me ensinando aquilo que para mim parecia impossível compreender. Sandro, que ensinava Etologia, gostava de louva-deuses e quando dava de imitá-los na sala, era hilário. Ensinou-me que meu corpo fala por mim, e que é sempre necessário estar atento às suas mensagens. Amauri, que era o professor de patologia, dizia sempre que eu me tornaria uma educadora pela facilidade com que eu conseguia transmitir aquilo que aprendia. Maria da Glória, minha professora de didática, que me ensinou, através da sua forma de agir em sala de aula, como não ser uma professora. Ari, que passou semanas tentando me ensinar a concepção de homem concreto de Marx e de trabalho alienado de Leontiev. Ensinou-me a importância de tentar sempre mais uma vez. E por fim, Ângelo, Marisa e Elenita. Os responsáveis pela minha inclinação à área da educação. Esses três, meus professores de Psicologia da Educação e Orientação Profissional, mudaram meu modo de ver o mundo. Brincaram com todas as minhas convicções fracas, de modo a destruí-las e me ajudaram a reerguê-las, baseando-se na verdade, no conhecimento e na ciência.
Escrever este texto me causou um grande sentimento de nostalgia, uma saudade imensa dessas pessoas tão queridas, e fez-me sentir injusta com aqueles não citados aqui. Devo meu caminho tal como está trilhado a essas pessoas maravilhosas, que de uma forma ou de outra, ensinaram-me o que é ser professor.

FOR YOUR BABIES



Essa musica me traz tantas recordações da minha bem vivida adolescência que, quando a ouço, tenho a impressão que meu peito vai explodir de emoção. Me lembro da inocência da época, das paixões puras e desinteressadas, das amizades sinceras, da honestidade dos olhares. Lembro-me de como foi acreditar, por um período que fosse, que a vida seria perfeita, que o príncipe chegaria em um cavalo branco, que as amizades durariam para sempre, que as pessoas que me rodeavam seriam sempre perfeitas... Lembro-me das voltas incessantes na avenida, das domingueiras no Ica, dos carnavais de muita folia, do cheiro de material escolar recém comprado, das cartas que escrevia e recebia, dos bilhetes em sala de aula, dos verões no ginásio vendo os jogos santacruzenses, de fumar escondido, matar aula pra ir na pracinha, das enquetes que vinham em cadernos e sempre acabavam com a pergunta: o que você acha da dona desse caderno?, das letras de músicas internacionais em folhas do Fisk, batalhadas com muito esforço por que eu não era aluna, de amigos que se foram para sempre, mas deixaram sua marca em minha existência, do coração batendo ao toque da mão desejada, do sabor do beijo por tanto tempo ansiado, dos bailinhos em casa de amigos, quando a vassoura se divertia rodando de mão em mão durante a canção, das bicotas roubadas, dos planos para o futuro, da banda Chegad´s, das vizinhas inseparáveis, dos dramas dos amores não correspondidos, da felicidade ensaiada... Tenho comigo uma certeza de que tudo isso ainda existe a medida em que nos lembramos disso. Há momentos em que me pego pensando nesses tempos e são nesses momentos que tenho uma vontade incontrolável de ligar para cada um de meus amigos daquela época e dizer que ainda penso neles, que sim, me lembro do que vivemos e essas lembranças me inundam de nostalgia às vezes... De dizer que ainda tenho suas cartas (sim, Ju, Patrícia, Silvinha, e Elaine, as do futuro também, me mato de rir com nossas previsões), que quando tenho um tempinho dou uma olhada nelas e me lembro de tudo aquilo... Thelma, o seu número de cartas supera o de todas as outras.

Enfim, a saudade só existe quando vivemos algo intensamente. E faz bem ao coração relembrar, é bom visitar o passado para recordar como nos tornamos quem somos hoje.